Apêndice IV
Aristocracia no pensamento de um Cardeal, controvertido mas insuspeito, do século XX
A extensa e erudita obra homiliária, Verbum Vitae – La Palabra de Cristo (10 volumes) elaborada sob a orientação de Mons. Angel Herrera Oria, então Bispo de Málaga (*), apresenta no seu tomo III (pp. 720-724) um esquema orientador para homilias contendo alguns pontos da doutrina da Igreja sobre a aristocracia.
(*) Verbum Vitae – La Palabra de Cristo – Repertorio orgánico de textos para el estudio de las homilías dominicales y festivas, elaborado por una comisión de autores bajo la dirección de Mons. Angel Herrera Oria, Obispo de Málaga, 10 vol., B.A.C., Madrid, 1953-59.
Mons. Angel Herrera Oria foi uma das figuras marcantes da Igreja em Espanha no século XX.
Nasceu em Santander em 1886. Em 1909, ainda como leigo, fundou, com o Pe. Angel Ayala S.J., a Asociación Católica Nacional de Propagandistas. Em 1911 fundou o quotidiano "El Debate" do qual foi director até 1933, ano em que foi nomeado presidente da Junta Central de Acción Católica. Teve actuação marcante em movimentos como Pax Romana e Acción Nacional. Em 1936 dirigiu-se à Suíça para estudos eclesiásticos, tendo sido ordenado sacerdote em 1940. Voltou a Espanha em 1943. Foi sagrado bispo em 1947 e designado para a diocese de Málaga. Durante a sua actuação como bispo daquela diocese dirigiu a elaboração da importante obra que contém o esquema aqui comentado. Permaneceu na mesma diocese até 1966 quando renunciou por razões de idade. Em 1965 tinha sido feito Cardeal por Paulo VI. O seu falecimento ocorreu em 1968 (cfr. Diccionario de Historia Eclesiastica de España, ed. Enrique Florez, C.S.I.C., Madrid, 1972, verbete Herrera Oria, Angel).
Como pensador, escritor e homem de acção, a figura de Mons. Angel Herrera Oria foi objecto de ardentes controvérsias. Enquanto os seus admiradores mais entusiastas se situavam normalmente no centro e na esquerda, os que dele discordavam, com não menor calor, faziam parte habitualmente da direita.
Não vem a propósito, aqui, tomar posição a respeito dessas múltiplas controvérsias.
Cumpre apenas acentuar que o presente texto sobre aristocracia recebeu uma aprovação irrestrita – quiçá a colaboração – de um alto prelado inteiramente insuspeito de parcialidade a favor do estamento nobiliárquico.
A respeito da sua participação na elaboração da referida obra homiliária, Mons. Angel Herrera Oria faz as seguintes advertências no Prólogo da mesma:
"A obra não é minha, ainda que seja minha a ideia, a alta direcção e uma parte do texto. A obra é fruto do trabalho de uma comissão, cujos membros constam no final deste Prólogo".
E mais adiante volta ao assunto:
"A obra é fruto de um trabalho em equipe. Colaborei com um grupo de pessoas muito competentes nas suas respectivas matérias" (op. cit., Prólogo, tomo I, pp. LXV e LXXI).
[FIM DA NOTA]
Passaremos a transcrever trechos desse esquema acompanhados de alguns comentários (*).
(*) O autor adverte que duas pequenas alterações foram realizadas na enumeração dos diversos itens em relação ao esquema original, para facilidade de exposição. Tal foi feito sem prejudicar em nada o pensamento dos autores do esquema, permitindo que este conserve toda a sua fluência e riqueza de expressão. A primeira delas refere-se à troca entre os itens "aristocracia na família" e "aristocracia política". E a segunda, a idêntica troca entre os itens "missão social moderna da aristocracia" e "a nova aristocracia".
[FIM DA NOTA]
Inicialmente, a aristocracia é considerada em função da sociedade, e não do Estado:
"A aristocracia constitui elemento necessário numa sociedade bem constituída."
Em seguida, o esquema acrescenta: "Recordemos o que ensinam a filosofia, a teologia e o direito público cristãos acerca da aristocracia."
1. Sentido filosófico
"Aristocratas são os melhores", segundo o sentido etimológico da palavra. Esta "leva entranhada em si a ideia de perfeição, a ideia de virtude."
Com efeito, "a aristocracia tem hábitos virtuosos". Trata-se aqui de hábitos "do entendimento e da vontade", pelos quais "se sobressai a aristocracia".
"O tipo de aristocrata individualmente considerado, engendrado pela filosofia antiga, é o sábio".
São virtudes fundamentais da aristocracia "a perfeição moral e o amor ao povo".
2. Sentido teológico
"A teologia projecta torrentes de luz sobre este conceito de aristocracia, e proporciona fundamentos sólidos ao direito público cristão.
"A aristocracia é perfeição. E aspirar à perfeição é um dever do cristão. `Sede perfeitos, como também vosso Pai celestial é perfeito' (Mt. 5, 48). `Aquele que é justo, justifique-se mais, e aquele que é santo, santifique-se mais' (Ap. 22, 11). `Caminha na minha presença e sê perfeito', disse Deus a Moisés.
"No que consiste a perfeição?"
Ensina S. Tomás:
"1) A perfeição da vida cristã consiste principalmente na caridade [ou seja, o amor de Deus].
"2) Com efeito, de qualquer ser se diz que é perfeito na medida em que alcança o seu próprio fim que é a última perfeição da coisa.
"3) A caridade é que nos une a Deus, o qual é o último fim da mente humana, porque `quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele' (I Jo. 4, 16) (cfr. II-II q. 184 a.1.2.3 c; ibid., q. 81 a.7 c).
"E, em consequência, é especialmente pela caridade que se alcança a perfeição da vida cristã".
Daí se deduz que:
"Esta ideia luminosa deve ser tida muito em conta pois ela vivifica toda a sociologia e toda a política, no que diz respeito à aristocracia.
"a) Aristocracia é perfeição.
"b) Perfeição é fundamentalmente caridade cristã ...."
3. O direito público cristão
"Aristocracia e propriedade. Não se atenta suficientemente para o facto de que um dos fundamentos da propriedade privada está no dever de se aperfeiçoar ...."
Leão XIII ensina na Rerum Novarum que os "bens se possuem como próprios e se administram como se fossem comuns. Ou seja, `satisfeito o proprietário no que lhe é necessário, e atendido o decoro e a perfeição', cumpre dar de esmola o que sobra. Fala-se muitas vezes da necessidade e do decoro, e se esquece que a perfeição é um dever".
O esquema passa então a considerações que o ambiente igualitário dos nossos dias vai sepultando lamentavelmente num inteiro olvido.
"Aos que vivem no mundo e têm família cumpre o dever de aperfeiçoá-la, e de elevar nos seus filhos o decoro e a consideração social da família, cristãmente entendidos.
"Contanto que se viva sob o influxo da caridade cristã, os pais devem procurar, que, na medida do possível, em ciência, em arte, em técnica, em cultura, em tudo, os seus filhos sejam melhores do que eles. Não para educar vaidosos, mas para oferecer à sociedade, em benefício do povo, gerações [sucessivamente] mais perfeitas.
"Os aristocratas devem, sobretudo, ter muito presente, para assimilá-los e aplicá-los, todos os progressos técnicos, sociais, etc., que possam satisfazer as necessidades das classes mais indigentes".
Estes ensinamentos tornam patente que o empenho das aristocracias para que, em sucessivas gerações, cresça continuamente o aprimoramento das moradias, do mobiliário, dos trajes, dos veículos, como também do porte pessoal e das maneiras, é um aspecto essencial dessa caminhada para uma perfeição global, quer para a glória de Deus, quer para o bem comum da sociedade temporal.
Tal não dispensa o perfeito aristocrata católico, nesta promoção do bem comum, de toda a solicitude que deve ter, no zeloso atendimento dos direitos das classes necessitadas.
Os aristocratas que assim forem constituem "os melhores", que pouco acima foram qualificados de "elementos necessários numa sociedade bem constituída".
4. Aristocracia social
O esquema passa a tratar, então, já não do aristocrata enquanto indivíduo, mas da família aristocrática:
"O aristocrata, ao aperfeiçoar-se e ao aperfeiçoar a sua família cria uma instituição dentro da sociedade, que é a família aristocrática".
O esquema deixa claro que, para ser fonte e propulsora desse impulso para o alto, a própria contextura familiar da aristocracia lhe é de grande vantagem. Pois é no seio das famílias de todas as classes sociais que se constitui a tradição própria a cada família. É no convívio familiar que os pais e os mais velhos encontram as condições psicológicas e as mil ocasiões propícias para comunicar as suas convicções e o fruto das suas experiências aos mais novos. Assim a acção propulsora rumo à "perfeição" pode ser obtida em condições óptimas. Esta acção visa de um modo muito importante, não apenas o bem individual dos membros da família, e o bem da própria família considerada enquanto um todo, mas o próprio bem comum da sociedade.
Com efeito, a sociedade é um ente colectivo mais durável que as famílias. E estas são mais duráveis que os indivíduos que as compõem nas várias gerações. E o que é mais durável só tem a se beneficiar com a força propulsora da aristocracia, na medida em que esta última tenha uma acção propulsora teoricamente tão durável quanto a própria sociedade.
E é à tradição que compete assegurar a durabilidade, os rumos e as características desta força propulsora.
E o esquema prossegue:
"Dir-se-ia que as próprias virtudes e a própria perfeição tendem a tornar-se hereditárias.
"Esta instituição não pode ser egoísta: deve ser eminentemente social e preocupada com o bem dos outros".
Destes princípios, enunciados com tanta clareza, deduz-se a justificação de um dos aspectos da aristocracia mais incompreendidos nos nossos dias: a hereditariedade.
Não são poucos os que afirmam parecer justo que mereça um título nobiliárquico a pessoa que tenha praticado acções árduas e reveladoras de qualidades pessoais relevantes, máxime quando tais acções, além de servir de exemplo a muitos, acarretam em si mesmas importantes efeitos para o bem comum.
Mas, acrescentam, a transmissão desses títulos nobiliárquicos à descendência de quem os recebeu, não se justifica. Pois muitas vezes os grandes homens têm filhos medianos, que não fazem jus aos galardões merecidos pelos maiores.
Na realidade, a aplicação de tal raciocínio veda a formação de famílias nobres, e faz tábula rasa da sua missão propulsora para o aperfeiçoamento contínuo de todo o corpo social. Aperfeiçoamento este que é um elemento indispensável para a caminhada contínua e empolgante de uma sociedade, de um País, rumo a todas as formas de perfeição desejadas pelos indivíduos, porque amam a Deus que é a própria Perfeição.
Noutros termos, se é justo tomar em consideração e premiar os grandes homens, não é justo, nem corresponde à realidade dos factos negar a missão dessas grandes estirpes na propulsão dos países em ascensão:
"A chamada aristocracia histórica está baseada na natureza humana e é muito conforme à concepção cristã da vida se se insere nas exigências desta.
"Não há escola comparável ao lar de uma estirpe autêntica e cristãmente aristocrática.
"Quando sabe cumprir os seus deveres, a sociedade deve reconhecer-lhe os meios dos quais necessita para este supremo magistério social".
"Palácios, quadros, pergaminhos, objectos de arte, obras primas, viagens, bibliotecas, etc.
"Todos estes são elementos que pertencem directa e imediatamente às grandes famílias.
"Contudo, o uso desses bens deve enquadrar-se na doutrina ascética e social da Igreja.
"Quando são usados para formar cidadãos selectíssimos para o bem da comunidade e neste uso se toma em conta o sentido cristão genuíno da vida, pode-se dizer que constituem uma espécie de forma de propriedade pública e colectiva, pois deles se beneficia toda a sociedade.
"A aristocracia é tão conforme à sociedade cristã, que uma sociedade não pode chamar-se perfeita senão quando existe nela a classe aristocrática. A sã aristocracia é flor e nata da Civilização Cristã".
Cada vez mais, conceitos como estes vão rareando na literatura católica sobre a aristocracia. Porém, tais conceitos jamais foram desmentidos pelo magistério da Igreja. E não poderiam faltar numa obra que, como esta, encara a aristocracia especialmente no contexto da Civilização Cristã, modeladora de todas as nações do Ocidente.
5. Aristocracia na família
Ainda sobre as relações entre aristocracia e família o esquema aborda um aspecto delicado e altíssimo da vida de uma classe aristocrática:
"A. Por certa analogia pode-se dizer que o poder aristocrático dentro do lar está reservado à mulher.
"a) A autoridade corresponde ao marido.
"b) Mas a mulher dentro da família é um elemento de moderação e de conselho.
"c) É um elemento de relação entre o pai e os filhos.
"1. Por ela se tornam muitas vezes eficazes, junto aos filhos, as ordens do pai.
"2. Através dela chegam ao pai as necessidades e os desejos dos filhos.
"B. S. Tomás diz que o pai governa os filhos com governo `despótico', no sentido clássico da palavra, e a mulher com o governo `político'.
"a) Porque a mulher é conselheira e participa do poder do pai.
"b) A mulher, por outro lado, tem como que a representação da caridade dentro da família. É como que a personificação da misericórdia no lar.
"c) É a que deve estar mais atenta às necessidades dos filhos e criados e mais pronta a mover o pai a remediá-las".
"C. No Evangelho aparece muito claro o contraste entre a falta de misericórdia, de caridade, de espírito aristocrático dos apóstolos na cena que comentámos (*) e a inefável missão aristocrática que desempenhou Maria Santíssima nas Bodas de Caná.
(*) O presente esquema é um dos vinte que desenvolvem o Evangelho da multiplicação dos pães (Jo. 6, 1-15).
"a) Atenta às necessidades dos demais, Maria aproxima-se de quem pode remediá-las para as expor.
"b) E depois se aproxima do povo, representado pelos criados, para mostrar-lhes que devem ser obedientes".
A comparação da missão da aristocracia no Estado e na Nação, com a da mulher – esposa e mãe – dentro do lar, é um pouco surpreendente para o leitor moderno. Pois as escassas obras de divulgação sobre a aristocracia hoje existentes habituaram, a justo título, o público a ver nela a classe militar por excelência, o que parece muito pouco afim com a missão da esposa e mãe na família.
Entretanto tal comparação nem por isso deixa de ser rica em sabedoria.
Para vê-la na sua justa perspectiva, é preciso ter em conta que a guerra é normalmente uma actividade exercida contra o estrangeiro. E S. Tomás trata aqui da missão da aristocracia, na vida interna e normal do País em tempo de paz, e não enquanto constituindo o gládio deste na defesa contra o inimigo externo.
Era inerente à aristocracia daquelas épocas que cada uma das famílias constitutivas dela reunisse em torno de si um conjunto de outras famílias ou indivíduos dum nível social menos elevado, a ela ligados por relações de trabalho de diversas índoles, de simples vizinhança, etc.
Nas cidades da sociedade medieval, e em parte nas do Antigo Regime, era normal a vizinhança de palácios, mansões, ou simples vivendas confortáveis, com habitações populares representativas de um teor de vida menos elevado. Esta vizinhança de grandes com pequenos repetia ao seu modo a atmosfera do lar aristocrático, constituindo assim um halo discretamente luminoso de afectos e de dedicações em torno de cada família aristocrática.
Por sua parte as relações de trabalho, pelo simples efeito da caridade cristã, tendiam sempre a extravasar do mero âmbito profissional para o âmbito pessoal. Nas longas convivências de trabalho, o nobre inspirava e orientava o que lhe estava abaixo, e a seu modo o mesmo fazia este último em relação ao nobre: informava-o das suas aspirações e diversões, do seu modo de ser na Igreja, na corporação ou no lar, e também das circunstâncias concretas da vida popular e das necessidades dos desvalidos. Tudo isto, enfim, constituía um circuito de inter-relações entre maior e menor, que o Estado pós-1789 procurou substituir quanto possível pela burocracia. Ou seja, pelos bureaux de estatísticas e informações, e pelos sempre activos serviços de informação policiais.
É através dessas burocracias que o Estado anónimo, por meio de servidores também anónimos (para não esquecer as grandes sociedades anónimas macropublicitárias), inspira, propulsiona e manda na Nação.
Reciprocamente esta fala ao Estado através da boca anónima das urnas eleitorais. Anónima, até ao último requinte do anonimato, quando o voto é secreto e o Estado nem pode saber quem votou de um ou de outro modo.
Este conjunto de anonimatos evita o quanto possível a presença do calor humano nas inter-relações do Estado moderno.
Outra era a índole dos países dotados de uma recta aristocracia. Nestes, como se viu pouco acima, as relações eram, quanto possível, pessoais. E a influência do maior sobre o menor como, a seu modo, a do menor sobre o maior, exercia-se em razão de uma relação de afecto cristão estabelecida de parte a parte. Afecto que trazia consigo, como efeito, a dedicação e a confiança mútuas. E que fazia até uma sociedade de facto, dos domésticos com os patrões. Algo como um protoplasma formado em torno do núcleo. Basta ler o que dizem os verdadeiros moralistas católicos sobre a sociedade heril para ter uma noção exacta deste tipo de relação.
Na corporação, a relação mestre-oficial-aprendiz repetia em larga medida a abençoada atmosfera da família. E assim por diante.
Ora, neste contacto vivo, não ficavam abarcadas apenas o que as modernas legislações de trabalho chamam fria, seca e funcionalmente "empregadores e empregados". Através dos seus servidores domésticos e profissionais, os de categoria mais elevada, fossem eles nobres ou burgueses, acabavam por conhecer as famílias dos seus subordinados, como estes conheciam as famílias daqueles. Em grau maior ou menor, conforme a orgânica espontaneidade da boa movimentação social, essas relações não eram apenas de indivíduo a indivíduo, mas entre família e família: relações de simpatia, benevolência, ajuda que procedia de alto para baixo, e de gratidão, afecto e admiração que se evolavam de baixo para cima.
O bem é difusivo de si. Era através das capilaridades desses sistemas que o grande acabava por conhecer misérias anónimas, porque a miséria torna isolado e desconhecido aquele sobre o qual ela se abate. E ao grande – o mais das vezes – pelas mãos delicadas da sua esposa e das suas filhas era dado remediar tantas dores que de outra maneira teriam ficado sem remédio.
Mas, neste vale de lágrimas, também o grande conhecia as suas horas amargas. Por vezes os seus inimigos cercavam-no, ameaçavam-no, agrediam-no, ora física ora politicamente. E a mais firme muralha desta grandeza que subitamente cambaleava era a das incontáveis dedicações que se erguiam desinteressadamente para protegê-lo, por vezes até com risco de vida.
Isto, que ficou dito especialmente com os olhos postos na vida urbana é supérfluo repeti-lo, a esta altura da exposição, no que concerne à vida rural, tanto era esta última propícia a criar a atmosfera e as relações já aqui descritas.
Tal foi a vida do feudo. Tal também a do campo quando, extinto o feudalismo, as antigas relações entre senhor e vassalo perderam o seu alcance político mas conservaram a sua realidade no mero âmbito do trabalho. E tal continua a ser, por vezes, nesta ou naquela região, deste ou daquele País, até nesta última década fuliginosa deste fim de século e de milénio.
Na perspectiva de um Estado monárquico, com algo de aristocrático e algo de democrático, visualizado por S. Tomás, a aristocracia é partícipe do poder real como a esposa o é do poder do esposo dentro do lar. A ela cabe, por uma acção moderadora, toda própria ao instinto materno, fazer chegar ao pai – no caso concreto ao rei – o conhecimento emocionante desta ou daquela necessidade dos filhos. Ou seja, dos pobres, dos pequenos, dos desvalidos que se achem no âmbito da influência benfazeja de um solar nobre. E obter o remédio correspondente dado pelo pai com o coração tornado benévolo.
Sempre na mesma perspectiva, é que, assim como à mãe cabe abrir o coração dos filhos a esta ou àquela ordem do pai, à nobreza cabe dispor o ânimo dos estamentos subordinados a um filial acatamento dos decretos do rei.
6. Aristocracia política
Até aqui, tratou-se da aristocracia enquanto classe social, considerada em si mesma. Daqui por diante, o tema passa a ser a missão da classe aristocrática na vida política e social do País.
Aqueles a quem estes ensinamentos pareçam quiçá excessivamente conservadores ou até reaccionários, causarão talvez agradável surpresa as palavras com que é abordado no esquema o tema da aristocracia política:
"A aristocracia social tem uma função a exercer directa e imediatamente junto ao povo.
"Mas, pela lei natural, exercerá sempre uma função política junto ao poder. Participará do poder em benefício do povo".
E, depois de se referir de passagem ao governo "chamado misto, no qual têm a sua função a `monarquia', a aristocracia e o povo", como sendo "o melhor governo segundo a filosofia católica", o esquema continua:
"A aristocracia, colocada entre a autoridade suprema, ou seja, a monarquia no seu sentido filosófico – mando de um – e o povo, é elemento de moderação, de ponderação, de continuidade e de união". Nessa perspectiva:
"1) A monarquia sem aristocracia facilmente conduz ao absolutismo.
"2) Povo sem aristocracia não é povo, é massa.
"3) A aristocracia defende a monarquia e a modera.
"4) A aristocracia é a cabeça do povo, a educadora do mesmo, orientadora das suas energias.
"5) A aristocracia sem povo é oligarquia, ou seja, privilégio odioso duma casta na sociedade".
7. Missão social moderna da aristocracia
O esquema enumera a seguir algumas características que devem ser encontradas na moderna aristocracia:
"Moderadora do poder; conselheira; conhecedora das necessidades do povo; defensora do povo ante a autoridade suprema; educadora do povo; ordenadora e orientadora das actividades do povo; há-de empregar todos os recursos da técnica e do progresso social em benefício, especialmente, das classes mais necessitadas".
Esta enumeração não é abarcativa. Parece ter sido feita com o empenho de evitar que a aristocracia seja acusada, como tão frequentemente o é, de classe minoritária monopolizadora de vantagens em detrimento do povo.
De facto, o esquema aponta, logo no início, a tendência da aristocracia à perfeição em todas as coisas, por amor à Perfeição absoluta que é Deus. O que a leva a ser uma possante propulsora do próximo para todas as formas de perfeição (antes de tudo as perfeições da virtude, mas também as do talento, do bom gosto, da cultura, da instrução... e até da técnica). Essa propensão dá-se inclusive por meio do decorum da vida, pelas artes, mobiliários, habitações, adornos, etc. Tudo deve difundir-se pelo corpo social inteiro, elevando-o à medida que a aristocracia se eleva a si própria, enquanto aristocracia.
Ora, para que esta acção de elevar se realize adequadamente através da aristocracia, é preciso ponderar que, assim descrita esta, os seus membros são os tais "melhores", cuja presença no poder como dirigentes da Nação constitui a aristocracia enquanto forma de governo.
Estas considerações deixam ver quanto a forma de governo é função das condições, sobretudo religiosas e morais mas também outras, do corpo social.
8. A nova aristocracia
O esquema também trata daquilo que chama de "nova aristocracia". E, se se deseja ter uma ideia exacta sobre a necessária mas prudente renovação das aristocracias, uma metáfora que descreveria o facto com uma precisão quase inteira é a da substituição da água em certas piscinas contemporâneas.
Nestas a água renova-se incessantemente, mas de modo tão gradual que esta renovação passa despercebida – ou quase – a quantos procurem observá-la. É, pois, uma renovação autêntica, em que, entretanto, a massa de água está longe de fluir rapidamente, e menos ainda com precipitação torrencial, impetuosa, dir-se-ia revolucionária.
"Com uma precisão quase inteira", diz-se pouco acima. E não inteira, porém. É que na piscina, a renovação, por mais lenta que seja, visa o escoamento de toda a massa de água. Quanto à renovação da nobreza, não é precisamente isso que se deve desejar. Pelo contrário, quanto mais lenta for a renovação dela tanto melhor será. Com efeito, a nobreza é pela sua própria natureza tão ligada à tradição, que o ideal seria que o maior número de famílias nobres se conservassem através dos séculos e dos séculos, indefinidamente. Sob a condição, todavia, de que tal conservação não se desse em benefício de elementos esclerosados, mortos, mumificados, e portanto incapazes de uma participação válida no acontecer ininterrupto da História.
Esta metáfora corresponde ao que sobre a matéria ficou dito no presente livro (*), e entra em inteira sincronia com quanto a tal respeito se encontra na obra citada do Cardeal Angel Herrera Oria.
(*) Cfr. Capítulo VII, 9.
"Sendo a aristocracia elemento necessário de uma sociedade bem constituída, parece natural, como princípio prático, que se salvem as aristocracias históricas, as quais normalmente conservam grandes virtudes; e que ao mesmo tempo se criem outras aristocracias.
"A aristocracia não pode ser fechada. Uma aristocracia fechada torna-se casta, que é a antítese da aristocracia, porque a casta como tal não conhece o princípio da caridade, que é a alma da aristocracia.
"Infelizmente, não poucas vezes o vírus mundano, ao infiltrar-se nos meios aristocráticos, transforma os mesmos em círculos fechados.
"O grande problema moderno neste campo é precisamente refazer as classes aristocráticas e criar novas formas de aristocracia".
Parte daí uma questão: se uma aristocracia está decaída, e os seus membros já não são os melhores, mas os piores, o que fazer?
Seria preciso criar novas classes aristocráticas, sem omitir que se faça o possível para reabilitar a aristocracia antiga. Mas fica entendido que se esta não se deixa reerguer, convém não pensar mais nela.
Se a aristocracia degenera, compete ao corpo social engendrar alguma outra solução, o que ele fará procurando – o mais das vezes instintiva e consuetudinariamente – o apoio dos elementos sadios que o compõem.
Falamos em "instintivamente" porque para as situações de emergência como esta, o bom senso e as qualidades do povo habitualmente podem mais do que os planos, se bem que por vezes brilhantes e sedutores, de sonhadores ou burocratas construtores de "paraísos" e "utopias". Tais planos, em virtude de carecerem de base na realidade, o mais das vezes só engendram fracassos e decepções.
* * *
Mas se na aristocracia não existem "melhores", e não há na plebe quem queira assumir, em virtude do princípio de subsidiariedade, a missão da propulsão para o alto, e se no próprio clero análoga carência se nota, um problema parece levantar-se: qual a forma de governo que pode, então, evitar a ruína de tal sociedade, de tal Nação?
Para resolver o problema, não falta quem se ponha a excogitar soluções políticas em virtude das quais um governo, supostamente composto de homens bons, consiga resolver a grande questão como que mecanicamente, e de fora para dentro de um corpo social que não está em boas condições.
Ora, quando todo o corpo social não está em boas condições, o problema pura e simplesmente é insolúvel. E a situação configura-se como desesperadora. Quanto mais se procure remediá-la, tanto mais ela se enreda nas próprias complicações, e acelera assim o seu próprio fim.
As situações desesperadoras só são solúveis quando um punhado de pessoas de Fé, esperando contra toda a esperança – contra spem in spem credidit (Rom. 4, 18), elogio que S. Paulo faz da Fé de Abraão – continua a esperar, esperar. Ou seja, quando almas cheias de Fé recorrem humilde e instantemente à Providência para obter desta uma intervenção salvadora. "Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae" – Enviai o vosso Espírito, e tudo será criado e renovareis a face da terra (Antífona da festa de Pentecostes).
Sem isto, é vão esperar a salvação de qualquer forma de governo, de sociedade ou de economia. "Nisi Dominus custodierit civitatem, frustra vigilat qui custodit eam" [Se o Senhor não guardar a cidade, inutilmente vigia a sentinela] (Sl. 126, 1).
E o substancioso esquema sobre aristocracia que acabamos de comentar, extraído da significativa obra elaborada sob a direcção do Cardeal Herrera Oria, termina com as seguintes considerações:
"Dizer, pois, que fazem falta almas aristocráticas nos nossos dias, é dizer que faz falta uma classe que se eleve sobre as outras pelo seu nascimento, pela sua cultura, pelas suas riquezas, mas antes de mais nada e sobretudo pelas suas virtudes cristãs e pela sua misericórdia sem limites.
"Aristocracia sem reserva abundante de virtudes cristãs perfeitas é rótulo vazio, história sem vida, instituição social decaída.
"O seu amor, o seu espírito e a sua vida hão de ser o espírito, a caridade e a vida de Cristo.
"Enfim, sem perfeição cristã, haverá aristocracias de facto e de fachada, mas não aristocracias autênticas, de obras e de direito."
A tomar no seu sentido próprio e natural estas últimas palavras do esquema, o leitor dá-se conta de que ele contém um juízo sobre a aristocracia do tempo em que a publicou o Cardeal Angel Herrera Oria: "... faz falta uma classe que se eleve sobre as outras pelo seu nascimento...". Ou seja, in concreto, a aristocracia daqueles dias não cumpria essa missão, isto é, a sua missão.
Se o esquema contivesse um elogio sem reservas à aristocracia do seu tempo, não há dúvida de que seria crivado de objecções por unilateral. Pois, dir-se-ia, a aristocracia tem ponderáveis qualidades, mas também graves defeitos.
Ora o presente juízo peca por unilateralidade, se bem que em sentido oposto. E, a bem da verdade histórica, cumpre dizer que, se a aristocracia dos anos 50 apresentava numerosos defeitos, é impossível negar que também apresentava relevantes qualidades.
* * * * *
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